Nevrite Óptica por Sífilis: Análise de Um Caso Clínico

INTRODUÇÃO

A sífilis consiste numa infecção sistémica provocada pela espiroqueta Treponema pallidum. Apelidada de “grande imitadora”, pode afectar todas as estruturas oculares (1).

As manifestações oftalmológicas podem surgir nos estádios secundário e terciário, sendo a uveíte a alteração mais comum (1,4).

Outras manifestações incluem a esclerite, espisclerite, queratite intersticial, retinite, vasculite retiniana, neurorretinite, coriorretinite e descolamento seroso da retina (1). A nevrite óptica constitui uma manifestação pouco frequente (1,8). Os autores descrevem um caso clínico de nevrite óptica por sífilis.

CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, 59 anos de idade, recorreu à Consulta Externa por diminuição súbita da acuidade visual (AV) do olho esquerdo (OE) com um mês e meio de evolução. Como antecedentes pessoais, apresentava um atraso do desenvolvimento psicomotor por complicações durante o parto, hipertrofia benigna da próstata e diabetes mellitus tipo 2 diagnosticada há 2 anos.

Encontrava-se medicado com metformina e doxazosina. Ao exame objectivo oftalmológico, apresentava uma melhor AV corrigida de 8/10 no olho direito (OD) e de conta dedos a um metro no OE, sem alterações dos reflexos pupilares. A biomicroscopia revelou uma facoesclerose bilateral.

Fundoscopicamente, não eram observáveis alterações no OD (Fig. 1-A). Contudo, apresentava uma ligeira diminuição do reflexo foveal do OE (Fig. 1-B). Foi realizada uma Tomografia Óptica de Coerência (OCT), que não demonstrou quaisquer alterações. A angiografia fluoresceínica revelou uma ligeira difusão tardia a nível macular e peripapilar no OE (Fig. 1-C).

Fig. 1 | Retinografia inicial do OD (A) e do OE (B). AAngiografia fluoresceínica do OE (C) revela uma ligeira difusão tardia (7min58seg) a nível macular e peripapilar.

Um mês após a primeira consulta, o doente mantinha acuidades visuais e achados biomicroscópicos sobreponíveis, bilateralmente. Contudo, a fundoscopia do OE revelava agora um edema papilar hiperémico (Fig. 2).

Fig. 2 | Retinografia do OD (A) e do OE (B), 1 mês após a primeira avaliação. Observa-se um edema papilar hiperémico do OE (B).

Na avaliação dos reflexos pupilares, constatou-se a presença de um defeito pupilar aferente relativo à esquerda. Foram novamente questionados os antecedentes do doente, tendo sido relatado um episódio de rash macular no tronco e nos membros há cerca de seis meses, que resolveu espontaneamente em duas semanas. Realizou-se uma perimetria cinética de Goldmann, que demonstrou um alargamento da mancha cega no OE (Fig. 3).

Fig. 3 | Perimetria cinética de Goldmann com alargamento da mancha cega no OE.

Não foi possível estudar a visão cromática devido à reduzida colaboração do doente. De modo a esclarecer etiologicamente o quadro de nevrite óptica anterior, foi solicitado um estudo analítico que não revelou alterações a nível de hemograma, velocidade de sedimentação, proteína C reactiva, perfil lipídico, anticorpos anti-nucleares e enzima conversora de angiotensina.

Contudo, o estudo serológico foi positivo para o VDRL (título de 1:128), FTA-ABS IgM e FTA-ABS sérico, compatível com o diagnóstico de nevrite óptica por sífilis. O anticorpo anti-VIH revelou-se não reactivo.

De forma a estudar o atingimento do Sistema Nervoso Central (SNC), realizou-se uma Tomografia Computorizada (TC) Cranio-encefálica, que revelou uma lesão hipodensa, antiga, associada a atrofia cortical focal no lobo frontal esquerdo. A punção lombar (PL) demonstrou uma pleocitose mononuclear (32 leucócitos/µL com 90% de células mononucleares) acompanhada de proteinorráquia (45,7mg/ dL) e negatividade para o VDRL, alterações compatíveis com neurossífilis.

O doente foi então internado para tratamento, tendo sido submetido a terapêutica com Penicilina G endovenosa durante 10 dias (4 milhões de unidades de 4 em 4 horas). De forma a diminuir a reacção de Jarisch–Herxhmeir (reacção constitucional secundária à morte das espiroquetas) e como tratamento coadjuvante da nevrite óptica, foi administrada metilprednisolona endovenosa, na dose de dez temporal papilar, sem edema (Fig. 4). 250mg/dia, durante 5 dias (1,4).

Fig. 4 | Retinografia do OD (A) e do OE (B), dois meses após o tratamento com penicilina. No OE (B), observa-se uma ligeira palidez temporal papilar.

Dois meses após o tratamento, decorrente do fortalecimento da relação médico-doente, foi revelado que este mantinha relações homossexuais desprotegidas desde há 30 anos. Nesta avaliação, verificou-se uma melhoria da AV corrigida do OE (6/10), sendo observável uma ligeira palidez temporal papilar, sem edema (Fig. 4). A perimetria cinética não revelou alterações (Fig. 5), tal como os potenciais evocados visuais.

Na última avaliação, realizada seis meses após o tratamento, o doente apresentava uma melhor AV corrigida de 8/10 no OD e de 7/10 no OE, sem alterações fundoscópicas de novo. Serologicamente, verificou-se uma diminuição do título de VDRL sérico (1:4). O doente aguarda a repetição de punção lombar.

Fig. 5 |Perimetria cinética de Goldmann sem alterações, dois meses após o tratamento com penicilina.

 

DISCUSSÃO

A sífilis ocular deve ser sempre tratada como uma neurossífilis e implica a realização de PL2. O estudo do líquido cefalo-raquidiano (LCR) é imprescindível para excluir o envolvimento do SNC e identificar os doentes que necessitam de repetição de PL, de forma a avaliar a resposta ao tratamento (2).

O diagnóstico é compatível com neurossífilis caso a análise do líquor revele pelo menos uma das seguintes alterações: pleocitose mononuclear (>5 leucócitos/µL), proteinorráquia (>45 mg/dL) ou VDRL positivo. O VDRL no líquor é frequentemente negativo, visto ser altamente específico mas pouco sensível (1).

No caso clínico descrito, além das alterações verificadas no LCR, foi observada a presença de atrofia cortical na TC, alteração esta também compatível com neurossífilis 7. Nos doentes com sífilis ocular e seronegatividade para o VIH, o título de VDRL sérico deve ser monitorizado semestralmente durante 12 meses.

Caso o título não diminua 4 vezes aos 6 meses ou se verifique uma persistência / recorrência da clínica, é necessário repetir o tratamento. Nas situações em que a análise do LCR revela critérios de neurossífilis, é essencial repetir a PL semestralmente, até que ocorra normalização dos leucócitos.

A normalização da concentração de proteínas é mais lenta e com menor significado. O retratamento deverá ser instituído caso a pleocitose não diminua aos 6 meses ou não ocorra normalização do líquor após 2 anos (2). Todos os doentes com sífilis devem ser avaliados quanto à seropositividade para o VIH e vice-versa (2). Devido à partilha de vias de transmissão das duas infecções, a sua coexistência é frequente. Por outro lado, a sífilis aumenta o risco de transmissão do VIH nas situações em que se verificam úlceras genitais (6).

Apesar de não ser a causa mais frequente de nevrite óptica, a sífilis deve ser considerada no seu diagnóstico diferencial (3,8). Se diagnosticada e tratada precocemente, apresenta um bom prognóstico (8,9).

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BIBLIOGRAFIA

1 – Aldave AJ, King JA, Cunningham ET. Ocular syphilis. Curr Opin Ophthalmol 2001; 12: 433–441.

2 – Centers for Disease Control and Prevention. Sexually Transmitted Diseases. Treatment Guidelines, 2006. MMWR 2006; 55(11): 22-30.

3 – Chao JR, Khurana RN, Fawzi AA, Reddy HS, Rao NA. Syphilis: reemergence of an old adversary. Ophthalmology 2006; 113: 2074-9.

4 – Danesh-Meyer H, Kubis KC, Sergott RC: Not so slowly progressive visual loss. Surv Ophthalmol 1999; 44: 247–252.

5 – Deschenes J, Seamone C, Baines M: Acquired ocular syphilis: diagnosis and treatment. Ann Ophthalmol 1992; 24: 134–138.

6 – Gaudio PA. Update on ocular syphilis. Curr Opin Ophthalmol 2006; 17:562–566.

7 – Peng F, Hu X, Zhong X, Wei Q, Jiang Y, Bao J, Wu A, Pei Z. CT and MR findings in HIV-negative neurosyphilis. Eur J Radiol 2008 Apr;66(1): 1-6.

8 – Smith GT, Goldmeier D, Migdal C. Neurosyphilis with optic neuritis: an update. Postgrad Med J 2006; 82: 36–39.

9 – Weinstein JM, Lexow SS, Ho P, Spickards A. Acute Syphilitic Optic Neuritis. Arch Ophthalmol 1981; 99: 1392-1395.

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Comentário

  • Aqui é a Solange De Oliveira, gostei muito do seu artigo
    tem muito conteúdo de valor, parabéns nota 10.

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